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Escuta à deriva

Rio Amazonas e Lagoa Rodrigo de Freitas

Registros fotográficos das ações por Hevelin Costa e Márcio Vasconcelos

Registros dos bordados por Leonardo Ramadinha

2015-2016

Escuta à deriva

Realizei o projeto Escuta à deriva (2015-2016) como uma tentativa de materializar a instabilidade e a sensação de deriva presentes nos encontros com o outro. Iniciei esse trabalho na Lagoa Rodrigo de Freitas, instalando no píer uma tabuleta convidando o passante para um encontro dentro do barco. A proposta consistia em estar junto, à deriva, dentro de um pequeno barco que era levado até outro píer pela força da correnteza e dos ventos ou por um barqueiro. O participante era convidado a “estar junto” em um espaço instável, em um território limitado fisicamente pelas dimensões do barco. A escuta era feita por uma fala verbal ou não, muitas vezes a travessia se dava no silêncio e outras vezes havia a verbalização do participante, que dividia comigo impressões, questões e histórias. Eu o deixava falar o que quisesse, sem o interrogar ou trazer nenhuma questão. 

Neste projeto estávamos, eu e o participante, a mercê da força dos ventos, das marés, do calor do sol, das chuvas. A instabilidade das condições ambientais incorporava o caráter também instável dos possíveis encontros, das falas e das escutas. O espaço/barco nos mantinha distantes da “terra firme” e era justamente este estado/atmosfera que eu desejava alcançar para o projeto Escuta à deriva. Eu utilizava uma câmera na tentativa de capturar imagens e o áudio do que era dito por meu interlocutor e, obviamente, o som da fala era invadido a todo tempo pelo barulho do vento e da água da lagoa, que batia no casco do barco. Inicialmente, foi um grande conflito para mim a invasão desses sons, e me deparava com a incapacidade de capturar aquele momento e de registrar o encontro. 

Algum tempo depois, durante o processo da Escuta à deriva, percebi que seria impossível cessar a força da natureza e que eu deveria obedecer às condições que aquele espaço/tempo me trazia. Passei a registrar os encontros à deriva por meio de anotações posteriores a essas escutas. Lancei mão da minha memória do que havia acontecido durante a escuta para bordar sobre o tecido palavras e desenhos que tentassem dar conta do que havia sido aquela experiência. O suporte que utilizei como matriz gráfica para a produção dos bordados foi uma bandeira náutica, utilizada para a comunicação entre pequenas embarcações. Durante o processo do trabalho percebi que todas as embarcações utilizavam bandeiras que, segundo o pescador e barqueiro que me auxiliou nas ações da escuta na Lagoa Rodrigo de Freitas, servem como meio de comunicação. A bandeira escolhida por mim foi “Preciso comunicar algo”, que funciona como pedido para que outra embarcação se aproxime o suficiente para que os navegantes possam se comunicar oralmente. Diferente dos outros projetos de escuta, a Escuta à deriva foi apresentada em espaço expositivo através, apenas, da série de bandeiras bordadas que levou o mesmo nome da bandeira original, Preciso comunicar algo. O bordado me foi ensinado na infância por minha avó, em momentos de prazer e brincadeira. No período em que realizei a Escuta à deriva, ela estava com a saúde muito frágil e eu tentava lidar com a impermanência, assim como com a instabilidade do barco. Entendi que não era possível lutar contra o fluxo natural da vida e que era preciso assumir a existência da finitude, assim como a força dos ventos e das marés. Não é possível capturar e congelar a presença do outro, era preciso aceitar a força da natureza. O bordado entrava na história como possibilidade de materializar a memória, era como trazer à tona o que havia ficado do outro em mim. Em 2016, levei o projeto Escuta à deriva para Rio Amazonas, durante o festival de performance Corpus Urbis, no Macapá.

O barco utilizado no projeto era motorizado e os participantes foram estudantes da universidade local e artistas envolvidos no festival. Havia um trajeto pré-determinado que se iniciava nas margens do rio, circulava a estátua de São José e retornava para a margem novamente. Dentro do barco um dos artistas, Marcio Vasconcelos, registrava a escuta. A proposta era que a comunicação feita durante a escuta não fosse apenas verbal, o que possibilitou uma maior liberdade corporal. A força do trabalho se localizava na liberdade dos movimentos do corpo e em uma comunicação que estava para além da palavra, respeitando o ritmo das marés e em comunhão com o som dos ventos e da água. Neste projeto, a vivência do inesperado se deu através da corporeidade dos participantes, que me solicitavam um diálogo diferente dos projetos anteriores. Para isso, coloquei meu corpo a serviço dessa experiência de escuta. Eu me movia em resposta aos movimentos dos meus interlocutores, em uma escuta não dotada de som, mas distante de ser silenciosa. Escrever sobre a experiência vivida não é o mesmo que vivê-la, principalmente se o trabalho de escuta em questão lida com os acontecimentos que o silêncio é capaz de trazer. Até então, todo o meu processo se dava apoiado no que era audível e visível, já que a linguagem verbalizada traz, a princípio, uma comunicação imediata. Porém, na Escuta à deriva realizada no Rio Amazonas, a inexistência da fala muitas vezes afirmava o ser. A liberação dos corpos proporcionava uma comunhão com o espaço de entorno e um maior sentimento de continuidade com tudo o que a água do rio, o calor do sol, o céu infinito têm de mais primitivo. Havia grande potência erótica na escuta dos corpos que, acredito, se dava no registro do desejo de continuidade. Alguns participantes me proporcionaram a experiência da fala através dos movimentos que se tornaram uma quase dança, a qual eu acompanhava com meu corpo na tentativa de construir um diálogo.

Escuta à deriva

Rio Amazonas e Lagoa Rodrigo de Freitas

Registros fotográficos das ações por Hevelin Costa e Márcio Vasconcelos

Registros dos bordados por Leonardo Ramadinha

2015-2016

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