Elisa Castro
Artista e Psicanalista
Não ceder ao medo
E.M. Horário Pacheco - Niterói
2017 e 2018
Exposição no Centro Cultural Hélio Oiticica - 2018
Exposição no Centro Cultural da Universidade Federal de São João del Rei - 2019
Registros fotográficos por Elisa Castro
Não ceder ao medo
Não ceder ao medo aconteceu em uma escola pública para crianças, localizada em uma comunidade de Niterói, tem como questão central a problemática da conexão com o outro em espaços de violência social e se deu a partir de práticas de escuta que envolveram tanto os alunos quanto os professores, além da comunidade do entorno. A pequena casa que serve de estrutura física para a escola fica localizada no centro de um vale habitado por mais de 8000 pessoas, que vivem na comunidade e, muitas vezes, estudam e trabalham nas redondezas, deixando seus filhos na escola municipal, onde o projeto se desenvolveu. O desejo de realizar um trabalho que pudesse fugir à programação da escola surgiu do incômodo gerado pela violência, trazida através do preconceito, que as crianças daquela área viviam. A falta de perspectiva dos estudantes, produzida por uma situação econômica desprivilegiada, era potencializada pelo olhar externo daqueles que não conheciam de perto a localidade. Os professores, apesar de fazerem um trabalho de muita qualidade, eram tidos como desqualificados pelo fato de lecionarem em uma instituição localizada no Sítio de Ferro. O achatamento da autoestima era a primeira consequência dessa violência indireta. Meninos e meninas cresciam com medo do mundo e influenciados pela convicção de que podiam muito pouco ou quase nada. Desta forma, o projeto foi criado a partir do desejo de estabelecer dinâmicas de escuta no ambiente escolar e na comunidade, através das quais fosse possível trocar e falar sobre experiências vividas naqueles espaços. Desde que foi criada, o Sítio de Ferro é assolado pela violência, originada em grande parte pelas frequentes operações policiais que o poder público “justifica” por meio do discurso de combate ao tráfico e a venda de drogas.
Ao iniciar minhas atividades na região notei o quanto era comum a fala sobre o medo mas, ao mesmo tempo, o quanto esse assunto transitava pelo ambiente escolar na condição de algo quase secreto, que não deveria ser dito. A partir de então, veio à tona a problemática da conexão com o outro em um espaço de violência social. Era muito comum crianças representarem, por meio de brincadeiras, as ações violentas que presenciavam em suas casas e nas redondezas, jogos que envolviam nomes de armas e venda de drogas. Nesses momentos era frequente presenciar uma criança lidando com a outra de forma agressiva com chutes, sacos, tapas e pontapés. Professores e terapeutas, ao observarem uma criança brincar, tendem inicialmente a querer interpretar o simbolismo do conteúdo da brincadeira e deixam de se concentrar no brincar como coisa em si.
Naturalmente voltamo-nos para a obra de Melanie Klein (1932). Em seus escritos, porém, Klein, na medida em que estudava a brincadeira, mantinha seu interesse centrado quase que inteiramente no uso desta. O terapeuta busca a comunicação da criança e sabe que geralmente ela não possui um domínio da linguagem capaz de transmitir as infinitas sutilezas que podem ser encontradas na brincadeira por uma criança na psicanálise infantil. Fazemos um simples comentário sobre a possibilidade de que, na teoria total da personalidade, o psicanalista tenha estado mais ocupado com a utilização do conteúdo da brincadeira do que em olhar a criança que brinca e escrever sobre o brincar como coisa em si.
WINNICOTT, Donald. O brincar (Uma exposição teórica). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 67
Winnicott traz da obra de Melanie Klein apontamentos sobre a brincadeira infantil, enquanto uma forma de comunicação genuína. Segundo a autora, a criança, que não possui um domínio da linguagem, transmite as sutilezas do que deseja comunicar através do brincar. Essa verdade também se aplica ao adulto que, diferente da criança, ativa a brincadeira por meio da linguagem verbalizada, através do senso de humor, da ironia, das inflexões de voz e da escolha de palavras.
A produção poética do trabalho se deu nas dinâmicas de escuta, que eram direcionadas na intenção de produzir um processo coletivo de apropriação e entendimento do lugar de fala a partir da fala do lugar, ou seja, por meio das questões sociais trazidas pelo espaço da escola inserida em uma área violenta. Nesse processo foi preciso abarcar toda, ou quase toda, a comunidade escolar. Durante todo o processo do trabalho eu percebia aquele espaço de forma diferente: enxergava aquela escola como um local de natureza heterotópica, que agregava aquilo que é considerado desvio em uma sociedade tradicional. Aos meus olhos, o ambiente escolar funcionava como um verdadeiro bunker de guerra que, durante as intervenções militares, abrigava as crianças da comunidade. Aquela escola, como instituição social que possui objetivos e metas, empregando e reelaborando os conhecimentos socialmente produzidos, era obrigada a se reinventar, tendo em vista uma realidade violenta.
Para construir um novo território afetivo poético, foi preciso ativar dispositivos que permitissem a fala e a escuta sem temor nem privações. Durante uma madrugada, instalei uma faixa com a frase “Não ceder ao medo”, que ocupava toda a extensão das varandas da escola, e pendurei uma bandeira branca com a mesma frase bordada. Ao retornarem no primeiro dia após as férias, os professores encontravam esses dispositivos instalados em seu espaço de trabalho. Ao longo deste dia, realizei uma oficina de História da Arte para os professores, em que trabalhei a potência revolucionária da arte em diferentes momentos históricos e contextos sociais. Posteriormente, no primeiro dia de aula das crianças, instalei uma urna transparente com a frase “Qual o seu medo?”. O objeto permaneceu durante alguns meses no pátio e foi acumulando respostas, tanto dos estudantes e professores, quanto da comunidade. Os alunos, envolvidos com o trabalho, traziam de casa papéis anotados com os medos de sua família.
A urna havia sido utilizada anteriormente, em minha trajetória, para a coleta de depoimentos em alguns desdobramentos do projeto de escuta Qual o seu medo?, ações iniciadas em 2007, por meio da coleta de medos através de uma secretária eletrônica e, posteriormente, com a urna. A intenção era buscar uma aproximação com o público, abrindo um espaço para receber respostas relativas às questões que eram pintadas por mim nos muros da cidade, junto a um número telefônico. A pergunta convocava o passante a se questionar. O muro que é tradicionalmente bloqueio, divisa entre o público e o privado, foi anteriormente escolhido como suporte para a pergunta.
Desenvolvi ao longo desses anos uma pesquisa em torno das relações e das possibilidades de conexão com o outro. Ao conhecer a Comunidade do Sítio de Ferro e a escola, percebi o trabalho acontecendo na potência das discussões sobre o medo e na força de transformação que o espaço me propunha por sua própria natureza. Retornei, depois de anos, ao meu trabalho com o medo, agora sob um novo formato e modo de fazer.O projeto realizado na Escola Prof. Horácio Pacheco teve como dispositivo inicial, em vez de uma pergunta, uma convocação através da frase “Não ceder ao medo”. A partir da adesão das crianças à ativação dos dispositivos e de rodas de conversa sobre os medos do grupo, propus que transformássemos nossa fala em imagem, e essa imagem em uma bandeira. Cada criança criou sua bandeira para que posteriormente pudéssemos, todos juntos, fazer uma caminhada na comunidade em torno da escola com as mesmas. Ao longo de mais de seis meses, o projeto se desdobrou com as crianças: o desenho era feito pelos alunos com o lápis sobre o tecido e posteriormente bordado por eles. A lentidão da prática da costura e do bordado foi uma tentativa de dilatação do tempo e elaboração psíquica do medo, em forma de brincadeira. Os instantes do bordado se tornaram o momento da escuta e do diálogo, no qual as crianças verbalizavam seus medos umas com as outras e também comigo.
Em Não ceder ao medo usei uma bandeira como dispositivo de comunicação. No projeto Não ceder ao medo, as bandeiras serviram como veículo para a fala e foram feitas por meus interlocutores – que produziam desenhos e palavras dando formas a seus medos, os comunicando de forma lúdica.
Na construção dos dispositivos individuais (bandeiras) com cada criança havia uma aproximação e construção de vínculo, não só entre mim e elas, mas também entre elas próprias, em uma situação na qual era recorrente a fala espontânea sobre situações de violência. As crianças se escutavam à medida que bordavam, conversavam umas com as outras, brincavam e mostravam o resultado de seu processo para os colegas, em uma dinâmica orgânica, a partir das demandas que surgiam entre elas. Eu observava a direção que estava sendo dada para o trabalho durante o processo e acompanhava o ritmo. A atmosfera criada suspendia o tempo e entrecruzava passado e presente, transformando o ritmo cotidiano da escola – tradicionalmente ditado pela rotina – através do tempo particular da expressão poética. Essa tentativa de instaurar no espaço escolar um estado de invenção, constituído por meio da construção de vínculos afetivos e da mobilização de questões internas de meus interlocutores. Quando as crianças de seis a treze anos, fizeram seus bordados, era muito comum surgirem nos desenhos medos relacionados à morte e a armas. A fala recorrente era relativa ao temor de perder a mãe em operações policiais, no tráfego do trabalho para casa, durante uma troca de tiros entre policiais e traficantes. Ser violentado de alguma forma por outro ser humano se mostrava sempre como uma possibilidade, o terror crescia na mesma proporção que os corpos daquelas crianças. Penso que suas estruturas psíquicas se constituíam a partir do medo, amadurecer para elas era ter que lidar com aquela realidade, sem o filtro da fantasia comum à infância.
Não ceder ao medo, na Escola Professor Horácio Pacheco, teve a duração de um ano. A intensidade das experiências vividas naquele espaço marcou profundamente o meu fazer/pensar como artista. Desta forma, se tornou fundamental para a conclusão deste projeto a exposição das bandeiras das crianças. O espaço escolhido para a exposição deste trabalho foi o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica no Centro do Rio de Janeiro e posteriormente o Centro Cultural da Universidade Federal de São João del Rei.
Não ceder ao medo
E.M. Horário Pacheco - Niterói
2017 e 2018
Exposição no Centro Cultural Hélio Oiticica - 2018
Exposição no Centro Cultural da Universidade Federal de São João del Rei - 2019
Registros fotográficos por Elisa Castro